Lógica e linguagem
Problemas com a dupla negação
Carlos César de Araújo
Matemática para Gregos & Troianos

Introdução

O seguinte trecho do CD Números (Capítulo IV) intrigou um professor de matemática do Maranhão:

• “Com exceção do zero, nenhum número natural é divisível por zero. Ou seja, © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César não divide nenhum número © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César.”

Num e-mail, o professor recomendava que fosse retirada a dupla negação presente na frase

© 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César não divide nenhum número © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César

por considerá-la inapropriada num trabalho que, em sua generosa opinião, primava pela clareza lingüística. O raciocínio do professor era que as negações contidas em não e nenhum se cancelariam para produzir a sentença

© 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César divide algum número © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César

cujo sentido — sem dúvida! — é bem diferente do da frase anterior

“Com exceção do zero, nenhum número natural é divisível por zero.”

Esse episódio se deu em fins de 2002. O professor recebeu meus esclarecimentos em menos de 24 horas, e nunca mais voltamos ao assunto. Em 2005 o CD entrou em sua segunda edição, recebeu vários acréscimos e pequenas alterações, mas a passagem acima foi mantida intacta — bem como todas as outras do mesmo gênero. Nesta página explicaremos o porquê.

A regra da dupla negação

No capítulo A Lógica da Matemática do CD Números (2ª edição), em Leis de negação, há uma lista de seis regras básicas para a negação de proposições. A primeira é a regra da dupla negação, assim enunciada:

© 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César

onde © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César é o símbolo para a operação lógica de negação.

Boa parte das aplicações equivocadas da regra da dupla negação decorrem de um entendimento imperfeito da própria operação de negação. A regra afirma que se negarmos a negação de uma proposição, o resultado será (logicamente equivalente a) a proposição original. Não é correto enunciar a regra como afirmando simplesmente que “duas negações se cancelam”, a menos que se deixe claro que o domínio da negação consiste apenas de proposições. Não faz sentido negar trechos isolados que não sejam proposicionais. Naturalmente, outra fonte de erros provém de dificuldades com o conceito de proposição.

Um exemplo correto de frase com duas negações que se cancelam é o seguinte (extraído do Capítulo XXI do CD Números):

• “Em resumo: não é verdade que os números complexos não podem ser ordenados.”

Destaquemos as negações aí envolvidas:

• “Em resumo: não é verdade que os números complexos não podem ser ordenados.”

Temos aqui uma instância (isto é, um caso) da regra da dupla negação. A frase acima pode ser substituída pela seguinte:

• “Em resumo: os números complexos podem ser ordenados.”

Explicação: dizer “não é verdade que © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César” é outra maneira de enunciar © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César, a negação de © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César. Na frase acima, © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César é a proposição

“os números complexos não podem ser ordenados.”

que por sua vez é a negação da proposição

“os números complexos podem ser ordenados.”

(Bem entendido: nesta sentença, “podem” não é usado na acepção deôntica, e sim como se referindo a possibilidade no sentido de existência. A frase significa que existe uma relação de ordem no conjunto dos números complexos. Veja o CD para mais esclarecimentos.)

Todo, algum e nenhum

Dentre as seis regras de negação mencionadas acima estão as que lidam com quantificadores. Resumidamente, a negação do quantificador existencial algum é o quantificador nenhum, que é uma forma do quantificador universal todo. Um enunciado mais cauteloso — em termos das clássicas formas aristotélicas — seria: a negação de

Algum © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César é © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César

é

Nenhum © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César é © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César

que é o mesmo que

Todo © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César é não-© 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César”.

Formulações ainda mais precisas podem ser obtidas usando-se os sinais © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César e © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César, explicados no CD Números (e mais plenamente no CD Lógica.)

A falsa dupla negação

Podemos ver agora que, contrariamente a todas as aparências, as duas negações contidas na sentença (e destacadas em negrito)

© 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César não divide nenhum número © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César

não se cancelam da maneira prevista pela regra da dupla negação (como pensava o nosso professor). Para fins de análise lógica, devemos identificar proposições que efetivamente estejam sob o efeito de não e nenhum. A principal dificuldade aqui é que o nenhum está numa posição atípica em relação à forma lógica padrão. Assim, é necessário parafrasear a sentença de modo que o nenhum apareça no início como um quantificador legítimo. Todos os que compreendem o português concordam que uma paráfrase aceitável é

nenhum número © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César é tal que © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César divide © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César”.

Um equivalente gramaticalmente mais comum seria

nenhum número © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César é divisível por © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César”,

que é outra maneira de asserir

“Com exceção do zero, nenhum número natural é divisível por zero.”

Negação pleonástica

Conforme discutimos detalhadamente no CD Lógica, sentenças como

© 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César não divide nenhum número © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César

são muito comuns em português e outras línguas (embora proscritas no inglês culto). São exemplos de negações redundantes ou pleonásticas, mediante as quais uma negação simples é reforçada pelo uso de duas “negações”. Trata-se de um recurso estilístico largamente empregado por todos e abonado pelos gramáticos, conforme exemplificado por frases corriqueiras como “Não conheço nenhum exemplo”, “Não sei de nada” etc. Em particular, como uma generalização do caso específico aqui examinado, podemos ver que uma sentença da forma

© 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César não está na relação © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César com nenhum © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César que satisfaz a propriedade © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César

diz o mesmo que

© 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César não está na relação © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César com © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César algum que satisfaz a propriedade © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César”,

que por sua vez é equivalente a

nenhum © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César que satisfaz a propriedade © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César está na relação © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César com © 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César”.

Do ponto de vista da Lógica, essas são apenas variantes enfáticas de um só esquema, que pode ser simbolicamente expresso por

© 2002-2006, Matemática para Gregos & Troianos - Carlos César

A Lógica nos ajuda a entender melhor essas variações, mas não nos proíbe de usá-las para tornar a comunicação menos monótona e mais agradável.


Carlos César de Araújo, 27 de fevereiro de 2006, 13:05:31