Carlos César de Araújo
No estudo dos conjuntos, como se sabe, freqüentemente lidamos com conjuntos de conjuntos. (Para evitar repetições deselegantes, também se diz coleções de conjuntos.) O exemplo não-trivial mais conhecido desta construção é dado pelo "conjunto das partes" de um conjunto , o qual é simplesmente o conjunto formado por todos os subconjuntos de . Este conjunto é denotado por , sendo também conhecido como o conjunto potência de — por razões que já explicamos em outro lugar.
Coleções de conjuntos são largamente empregadas em várias partes da Matemática, tais como a Combinatória, a Topologia Geral e a Teoria da Medida, disciplinas verdadeiramente fundamentais. Assim que você se acostumar com a idéia de que conjuntos de conjuntos são úteis — como, de fato, são —, certamente não terá problemas em considerar
o conjunto de todos os conjuntos.
Este é um conjunto muito especial, pois contém todos os conjuntos concebíveis. Constitui, portanto, o universo dos conjuntos, motivo pelo qual vamos designá-lo por (de "universo"). Assim, seja qual for o conjunto , devemos ter .
Observe que a formação de é extremamente natural. É bastante comum fixarmos um "universo de discurso" quando trabalhamos num contexto específico. Assim, se o tema em discussão é "conjuntos", então é natural que fixemos o nosso "universo" como sendo o conjunto de todos os conjuntos. Segue-se abaixo um "instantâneo" de .
Há muitas coisas que podemos dizer a respeito de sem grandes dificuldades. Uma delas é que
seja qual for o conjunto . Com efeito, os elementos de são conjuntos; mas todo conjunto pertence a . Portanto, todo elemento de é também um elemento de , o que significa que está contido em .
Como é um conjunto, estamos autorizados a fazer na inclusão geral acima, o que nos dá
Agora, respire fundo e prepare-se para o salto derradeiro. É intuitivamente óbvio que, sendo um subconjunto de , o número de elementos de deve ser menor ou igual ao número de elementos de . Claro, não? Mas isto contradiz o famoso Teorema de Cantor, segundo o qual deve acontecer exatamente o contrário: para todo conjunto , o cardinal de é sempre maior do que o cardinal de .
Estamos, portanto, diante de uma contradição: por um lado, o Teorema de Cantor nos garante que tem mais elementos do que , seja qual for o conjunto . Todavia, o argumento acima mostra que esta afirmação é falsa quando é o universo de todos os conjuntos.
Se rejeitarmos a idéia de que a Matemática pode conter contradições, então, de acordo com as regras tradicionais da Lógica, alguma coisa deve estar errada no raciocínio acima. Como na conhecida prova da irracionalidade de , o que vimos há pouco foi simplesmente uma prova por redução ao absurdo: uma (ou mais de uma) hipótese falsa foi assumida e o surgimento da contradição meramente comprova a falsidade dessa hipótese. Ótimo, mas é aqui que reside o "paradoxo": qual hipótese? Se o que temos acima é realmente uma demonstração por redução ao absurdo, que teorema ela demonstra? Você consegue localizar algum passo que lhe pareça problemático?
A maioria dos autores chama a contradição acima de Paradoxo de Cantor. Georg Cantor (1845-1918) foi o matemático alemão que inaugurou o estudo sistemático dos conjuntos infinitos. Contudo, tanto quanto sei, Cantor jamais discutiu esse paradoxo isoladamente — pelo menos, não da maneira acima. (O fato de ele nunca ter utilizado notações como "" e "" é, obviamente, irrelevante.) Por outro lado, é indubitável que ele conhecia o paradoxo. Mais ainda: ao contrário do que muitos já pensaram e ainda pensam, Cantor chegou a propor uma solução para dificuldades de gênero semelhante. Isto foi feito numa carta endereçada a Richard Dedekind em 28 de julho de 1899. Uma tradução da mesma para o inglês se encontra na coletânea From Frege to Gödel: A source book in mathematical logic, 1879-1931 (pp.113-117) editada pelo lógico francês Jean van Heijenoort (1912-1986). Eis (minha tradução de) um trecho dessa versão que mostra claramente como Cantor estava ciente do problema e a solução que entreviu. (Os grifos são do original.)
Se partirmos da noção de uma multiplicidade (um sistema, uma totalidade) definida de coisas, faz-se necessário, conforme descobri, distinguir dois tipos de multiplicidades (com isto significo sempre multiplicidades definidas).
Pois uma multiplicidade pode ser tal que a suposição de que todos os seus elementos "estão juntos" conduz a uma contradição, de modo que é impossível conceber a multiplicidade como uma unidade, como "uma coisa acabada". Chamo tais multiplicidades de absolutamente infinitas ou inconsistentes.
Conforme podemos ver facilmente, a "totalidade de todas as coisas imagináveis", por exemplo, é uma tal multiplicidade. Outros exemplos serão dados adiante.
Se, por outro lado, a totalidade dos elementos de uma multiplicidade puder ser pensada sem contradição como "estando junta", de modo a poder ser reunida em "uma coisa", então eu chamo essa totalidade de multiplicidade consistente ou um "conjunto".
Em sua carta a Dedekind, Cantor não esmiuça propriamente o paradoxo que hoje leva o seu nome, e sim um outro bem mais técnico, relacionado com o conjunto de todos os números ordinais (hoje conhecido como Paradoxo de Buralli-Forti). Porém, depreende-se facilmente como Cantor reagiria (em 1899) diante da contradição que apresentamos acima: a "multiplicidade" é "inconsistente"; não é um conjunto. Em suma, a frase "conjunto de todos os conjuntos" é uma contradição de termos — literalmente!
Paradoxalmente, a história do paradoxo de Cantor não termina aqui. É o que você verá ao ler os demais artigos desta seção.
© Carlos César de Araújo, 13 de junho de 2002