Teoria da Ordem
Introdução Inúmeros conceitos matemáticos envolvem uma relação de ordem num conjunto. A divisão de polinômios depende de uma ordenação das variáveis. A matriz de um sistema de equações lineares depende da ordem das incógnitas. Operações básicas como a de formar uma união de conjuntos e calcular um máximo divisor comum, embora tão diferentes entre si, não só dependem de uma relação de ordem em seus respectivos domínios, como são, abstratamente falando, a “mesma” operação — oriunda dessas diferentes ordens. O primeiro dos 23 problemas de Hilbert menciona um fato sobre ordens (que logo depois se provaria ser equivalente ao Axioma da Escolha). Relações de ordem surgem em incontáveis partes da Matemática, seja “elementar”, “avançada”, “pura” ou “aplicada”, tais como na Álgebra, Topologia, Lógica, Geometria, Física, Lingüística e Teoria da Programação. Vários artigos do Matemática para Gregos & Troianos tratam de assuntos que envolvem relações de ordem. Conseqüentemente, o que se ganha com o estudo geral dessas relações é o mesmo que se lucra com o de qualquer outra estrutura matemática abstrata: economia de raciocínio e clareza conceitual. Este artigo apresenta a teoria da ordem princialmente como uma referência para outros artigos do site, nos quais aplicamos as definições e teoremas gerais aqui apresentados aos casos particulares de interesse. Por causa disso, a exposição aqui é mais concisa e formal do que de costume. (O artigo O Conceito de Estrutura serve de preparo para o leitor iniciante.) Muitas demonstrações foram deixadas para exame mais detalhado em outras seções do site (particularmente a seção Lógica). Além disso, este artigo estará em permanente expansão: definições e resultados serão inseridos em outras Partes de tempos em tempos, conforme a necessidade imposta por outros artigos. Observações sobre notação e terminologia Veremos diversos tipos de relações de ordem, cada um definido por uma lista de propriedades. A maioria dessas propriedades são formas “desencarnadas” das que valem para as familiares relações de desigualdade ( é menor ou igual a ) e ( é menor que ) entre números. Na verdade, a teoria da ordem pode ser vista como um estudo puramente axiomático das desigualdades: simplesmente escolhemos certas propriedades e definições que envolvem essas relações, estendemo-las a conjuntos arbitrários e examinamos a força lógica das mesmas em conjunção com outras condições. Em cada definição ou axioma teremos sempre dois ingredientes básicos: um conjunto e uma relação binária em , isto é, uma relação que só pode vigorar entre dois elemento de cada vez. (Alternativamente, podemos olhar como um conjunto de pares ordenados e dizer que .) O mesmo adjetivo usado para uma ordem também é aplicado à estrutura . Por exemplo, as sentenças “ é uma ordem parcial em ” e “ é um conjunto parcialmente ordenado” são tomadas como sinônimas. Uma parte substancial dos teoremas (conseqüências dos axiomas e definições) pode ser obtida por manipulação mecânica de conectivos e quantificadores — não passando, portanto, de um puro exercício de Lógica. Visando ressaltar a importância desse fato, usamos livremente símbolos lógicos como (“e”), (“ou”), (“se-então”), (“se e somente se”), (“para todo”) e (“existe”). Para reduzir o comprimento dos enunciados, omitimos a referência ao conjunto na maioria dos quantificadores. Assim, conforme o contexto, uma sentença da forma significará . (Analogamente, sentenças sem quantificadores em definições e teoremas devem ser entendidas como estando precedidas de quantificadores universais para cada variável livre.) Se , então o fato de estar na relação com pode ser expresso por (notação prefixa) ou (notação infixa). Em se tratando de relações de ordem, são comuns duas convenções: uso da notação infixa e dos símbolos tradicionais e para designar ordens em geral. (São também freqüentes o uso de variantes estilísticas de , tais como e .) Também usaremos sinais infixos, mas seguiremos uma prática mais recente (e comum entre os cientistas da computação) que consiste em usar os símbolos “quadrados” e como variáveis para ordens. As relações inversas são designadas por e , respectivamente. Lembramos que a inversa (ou oposta) de uma relação é a relação que vale entre e se, e somente se, . Assim, por definição, teremos sempre
Na teoria da ordem, é útil dispor de maneiras alternativas de expressar em palavras uma afirmação da forma (além da tradicional “ está na relação com ”). Citamos abaixo alguns exemplos:
• é -antecessor de Na prática, é muitas vezes possível omitir a referência explícita a sem causar ambigüidades (o que é feito, aliás, em quase toda a literatura). Outras definições e convenções notacionais (que não são exclusivas das relações de ordem) são: • com uma extensão óbvia (usando indução finita) para qualquer número finito de elementos: • . Chamamos a relação estrita derivada de . • , com extensões análogas para um número finito qualquer de elementos. Uma conseqüência da definição de é que
Este é um exemplo de conseqüência “puramente lógica” de definições (depende apenas da semântica dos sinais lógicos e da relação de igualdade). Finalmente, às vezes achamos útil usar o símbolo como uma maneira sucinta de declarar que se tem uma igualdade aceita por definição (e não como conseqüência de algum fato prévio). Pré-ordens Muitos autores iniciam a teoria da ordem com as pré-ordens, mas rapidamente desenvolvem a maioria das definições (como as de mínimo e supremo) para as ordens parciais (assunto da Parte 2). Contudo, veremos que é útil explorar as pré-ordens ao máximo (!) — até que o esgotamento de resultados interessantes nos force a impor mais restrições. Um conjunto pré-ordenado é um par , onde é uma relação em que é reflexiva e transitiva, isto é, que satisfaz as seguintes condições:
Recordamos que uma relação de equivalência em é uma relação reflexiva, transitiva e simétrica. Portanto, pré-ordens são uma generalização das relações de equivalência. Uma propriedade que muito facilita o estudo das ordens é a anti-simetria, isto é, o fato de sempre implicar . Ela vale (por definição) para as ordens parciais que mencionamos há pouco. Contudo, muitas pré-ordens interessantes não são anti-simétricas, como é o caso da relação ( divide ) num anel comutativo (sobre a qual falaremos em outro artigo). Mas ainda que a relação não seja necessariamente a igualdade, tem em comum com ela o fato de ser uma relação de equivalência, conforme veremos agora. Definição. . Teorema 1. Se é uma pré-ordem em , então é uma relação de equivalência em . Demonstração. A relação estrita derivada de uma pré-ordem jamais é uma pré-ordem, pois não é reflexiva. Mas pode ser transitiva, se bem que não necessariamente. É fácil ver que de podemos concluir que e ; mas como a relação não é transitiva, não podemos asserir que e . Contra-exemplos concretos serão vistos em outra parte. Dualidade Veremos que várias proposições sobre uma pré-ordem valem também para a relação inversa . O teorema abaixo mostra que a inversa de uma pré-ordem também é uma pré-ordem. Teorema 2. é uma pré-ordem em se, e somente se, é uma pré-ordem em . Realmente, dada uma relação (binária) , é fácil ver que é reflexiva se, e somente se, é reflexiva. Do mesmo modo, as sentenças “ é transitiva” e “ é transitiva” são sinônimas. (Veja as provas na seção Lógica.) O Teorema 2 simplesmente exprime esses dois fatos numa outra terminologia. Seja uma afirmação qualquer (definição ou teorema) envolvendo uma pré-ordem num conjunto . A proposição dual de é a proposição que se obtém de substituindo a relação pela sua inversa . Em particular, o dual de um conceito definido em é o conceito correspondente definido em . Isso será esclarecido adiante. Decorre do Teorema 2 que se é conseqüência lógica das condições (O1) e (O2), então também o é. Desse modo, se num teorema válido para conjuntos pré-ordenados trocarmos cada conceito pelo seu dual, o resultado é ainda um teorema válido para conjuntos pré-ordenados. É evidente a importância prática desse resultado: cada teorema automaticamente nos presenteia com o seu dual. Exemplos Por ora, mencionaremos rapidamente apenas três exemplos simples de pré-ordem. O exemplo dos anéis será explorado detalhadamente em outro lugar. Os conjuntos numéricos fundamentais , , e são pré-ordenados pela relação (menor ou igual a). Qualquer coleção de conjuntos é pré-ordenada pela relação de inclusão, aqui denotada por . Ou seja, , com , é um conjunto pré-ordenado. Lembramos que a relação entre conjuntos é definida por
Há autores que denotam a inclusão por , deixando o símbolo para a relação estrita (isto é, ). Esse esquema tem as suas vantagens, mas não o adotaremos neste artigo. Finalmente, qualquer anel com unidade é pré-ordenado pela relação (lê-se “ divide ”), definida por . (A existência de unidade garante a reflexividade; e a transitividade decorre da associatividade da multiplicação do anel.) Intervalos Dados uma pré-ordem em e um elemento , o conjunto dos sucessores de
(que é a imagem de pela relação ) é um exemplo de intervalo em . Mostramos abaixo algumas notações para esse intervalo que se encontram na literatura:
Note-se que o intervalo depende da relação , embora isso não seja ressaltado por nenhuma dessas notações. Neste artigo usaremos a primeira notação. Quando quisermos tornar explícita a relação , escreveremos
Por dualidade (isto é, aplicando essa definição à pré-ordem inversa), obtemos o intervalo “à direita”
ou seja,
Outras espécies de intervalo em são definidas abaixo:
(Usamos essas notações clássicas como uma concessão à tradição. Por ora, os sinais “” e “” não passam de meras decorações notacionais.) É fácil e instrutivo formular os axiomas de pré-ordem em termos de intervalos. Temos (onde deixamos implícita a referência a ):
A condição de transitividade (O2) também pode ser escrita em termos de intervalos “à direita”:
Teorema 3. Se é uma pré-ordem em , então
Corolário. Se é uma pré-ordem em , então
Com as formulações dos axiomas em termos de intervalos, tanto o Teorema 3 como o seu corolário tornam-se evidentes. O corolário resulta da anti-simetria da inclusão (se e , então ), e deixa mais claro porque a relação é de equivalência (Teorema 1). Majorantes e Minorantes Doravante, até o final deste artigo, fixaremos um conjunto pré-ordenado e um conjunto . Diz-se que é um majorante de quando satisfaz uma qualquer das seguintes condições equivalentes:
Ou seja, um majorante de é um elemento que domina todos os elementos de . Não há uma notação padrão para o conjunto dos majorantes de , mas a última condição acima mostra que podemos exprimi-lo como uma interseção de intervalos “à esquerda”. Se o denotarmos por (sem referência à pré-ordem usada), então teremos a igualdade
O dual de “majorante” é minorante. Assim, definimos um minorante de (com respeito a ) como um que é majorante de sob a pré-ordem oposta. Qualquer uma das cinco sentenças abaixo traduz essa condição:
Portanto, se denotarmos o conjunto dos minorantes de por , então
(Se insistíssemos em usar notações ultraprecisas, teríamos dito que .) Outra formulação da definição de majorante é a que decorre da equivalência (provada na seção Lógica)
(Em palavras: está contido em todo conjunto de se, e só se, está contido na interseção desses conjuntos. Voltaremos a esse fato na Parte 2.) Isso posto, retomemos a definição de “”: Após usarmos intervalos como no Teorema 3, obtemos as seguintes condições equivalentes à de majorante de :
Analogamente, cada uma das duas condições abaixo diz o mesmo que “ é minorante de ”:
Como exercício, deixamos para o leitor verificar que
Maxímos e Mínimos Dando prosseguimento à discussão anterior, dizemos que é um máximo de quando é um elemento de que é também majorante de . Assim, a condição de máximo é a conjunção das duas seguintes:
• ; Dualmente, dizemos que é um mínimo de quando
• ; Portanto, o conjunto dos máximos de é
e o conjunto dos mínimos de é
Na ausência de condições adicionais sobre a pré-ordem , é impossível concluir que dois elementos máximos (ou mínimos) são iguais. A relação mais geral entre dois elementos máximos é a seguinte: Teorema 4. . A comprovação é imediata, valendo o mesmo para mínimos (por dualidade). Supremos e Ínfimos Das definições anteriores vê-se facilmente o seguinte: se é majorante de e , então também é majorante de . Ou seja, “acima” de um majorante temos mais majorantes. Assim, torna-se interessante examinar majorantes que sejam mínimos. Isto nos leva à importante noção de “supremo”. Dualizando a discussão, teremos o conceito de “ínfimo”. Diz-se que é um supremo de quando são verdadeiras as duas afirmações seguintes:
(1) é um majorante de ; Ou seja, se designarmos o conjunto dos supremos de por , então, por definição,
O teorema seguinte nos dá uma caracterização do supremo que será de enorme importância. Teorema 5. Demonstração. Corolário. . Conforme antecipamos, o dual de “supremo” é “ínfimo”. Contudo, é pedagogicamente mais útil definir “ínfimo” separadamente e depois provar a dualidade. Assim, dizemos que é um ínfimo de quando:
(1) é um minorante de ; Escrevamos para o conjunto dos ínfimos. Então, a definição de ínfimo assume o seguinte aspecto:
Temos, agora, a esperada dualidade (com o devido destaque para a relação ): Teorema 6. . Demonstração. Corolário. . Demonstração. Teorema 7. . Demonstração. Corolário. . Continua. Bibliografia Carlos César de Araújo, 18 de novembro de 2006, 15:36:55 |