Erros em Provas da ANPAD
Carlos César de Araújo
Introdução
Em outro artigo desta Seção (O que é um Argumento?), comentei sobre uma questão da prova de Raciocínio Lógico do Teste ANPAD. Não havia erro algum na questão, e sim na solução anotada por um leitor. A seguir, discutirei outro problema daquela mesma edição, mas com um erro grave em seu enunciado, o suficiente para invalidá-lo completamente. Todavia, conforme pude confirmar através dos meus alunos deste semestre, a Coordenação do Teste ANPAD não percebeu o erro — ou não quis reconhecê-lo. De fato, a questão pode ser vista, sem nenhuma alteração ou comentário pertinente, no Vol.5 do Caderno TESTE ANPAD, que traz as provas de junho de 2006 a junho de 2007.
Enunciado do Problema
Transcrevo abaixo a questão 19 da edição de setembro de 2006 da prova de Raciocínio Lógico do Teste ANPAD.
Sejam as notações predicativas:
: é presidente do Brasil.
: é democrata.
A proposição composta “O Presidente do Brasil não é democrata” pode ser representada na linguagem simbólica por
A) .
B) .
C) .
D) .
E) .
A Resposta da ANPAD
Eis a “solução” apresentada pelos organizadores do Teste ANPAD, extraída do Caderno TESTE ANPAD publicado em junho de 2007.
Solução da ANPAD
“Cabe observar que se trata de um presidente e não de qualquer um, ou seja, de um existencial. Assim, se for qualquer outro e se for o mesmo, ele não poderá ser democrata. Portanto, a alternativa correta é a D.”
Os Erros da Resposta
Não nos esqueçamos que se trata de descobrir qual das alternativas é uma tradução simbólica da proposição “O Presidente do Brasil não é democrata”. A alternativa D, apontada como correta, é, de fato, uma proposição existencial. Contudo, da desconjuntada estrutura gramatical da resposta infere-se que o presidente é um “existencial”! O presidente é um existencial? Podemos ignorar esse deslize e tentar extrair algo mais palpável do pouco que resta. Mas logo nos deparamos com uma contradição: “se for qualquer outro e se for o mesmo”. Ora, nenhum outro presidente pode ser o mesmo presidente! Lamentavelmente, é verdade que se um outro presidente for o nosso presidente, então ele não poderá ser democrata — mas isto devido ao fato trivial de um condicional material clássico ser verdadeiro se tiver antecedente falso (como é o caso). Em suma, não há nada na resposta que permita concluir que D é a alternativa correta. Além disso, veremos que D não é a alternativa correta!
O Erro da Questão
Nenhuma das alternativas apresentadas na questão constitui uma tradução simbólica correta de “O Presidente do Brasil não é democrata”. A alternativa D, apontada como correta, é a que mais se aproxima da verdade. Vejamo-la novamente:
Acontece que a formulação correta é
ou ainda (sem o excesso de parênteses):
Note-se que esta sentença difere da alternativa D apenas em um sinal: em vez do primeiro sinal de implicação (), temos o sinal de conjunção (). Trata-se de uma pequena alteração, mas que acarreta uma sentença fechada não equivalente à alternativa D. A não equivalência pode ser provada sem dificuldade, mas o leitor certamente deve estar perguntando como posso estar certo de que a proposição alterada é mesmo uma tradução correta. Bem, os lógicos devem essa solução engenhosa a Bertrand Russell.
Descrições Definidas
A sentença “O Presidente do Brasil não é democrata” contém um exemplo daquilo que os lógicos chamam de descrição definida. A parte “O Presidente do Brasil” é uma descrição definida, como o são “o número primo que é par” e “o atual Rei da Inglaterra”. Este último exemplo era um dos preferidos do lógico inglês Bertrand Russell e foi muito usado em suas publicações nos períodos em que a Inglaterra tinha um Rei. A partir de 1905, Russell publicou análises penetrantes de proposições com descrições definidas, nas quais mostrava como se podia reescrever tais proposições em termos dos quantificadores e .
Talvez fosse demais esperar que os responsáveis pelo Teste ANPAD compactassem em poucas linhas tamanho esforço de elucidação, mas nenhuma resposta ao nosso problema pode ser satisfatória sem menção explícita de alguma teoria padrão — e essa é a teoria das descrições de Russell. Essa teoria, bem como algumas das dificuldades que engendra (como a distinção entre ocorrências primárias e secundárias relativas ao escopo da negação), é um dos temas centrais de um dos artigos da Seção Lógica deste site (A Importância de Ser Único).
Carlos César de Araújo, 2 de setembro de 2007, 21:47:54