O que é um argumento?
Carlos César de Araújo
Introdução
O problema abaixo é a questão 8 da edição de setembro de 2006 da prova de Raciocínio Lógico do Teste ANPAD.
O argumento que NÃO é válido é:
A) O céu é azul e a terra é amarela. Logo, a terra é amarela.
B) Manuel é rico. Todos os homens ricos são divertidos. Logo, Manuel é divertido.
C) O céu é azul ou a grama é verde. Logo, a grama é verde.
D) Dinheiro é tempo e tempo é dinheiro. Logo, dinheiro é tempo.
E) O domingo é divertido e tudo é azul. Logo, tudo é azul.
A respeito dessa questão, um visitante assíduo deste site pediu-me que comentasse a solução abaixo, cuja fonte ele preferiu não revelar.
Solução anotada e enviada pelo leitor
Pela definição de argumento, é necessário que haja pelo menos duas premissas seguidas de uma conclusão válida, que deve estar baseada em todas as premissas. Observe o leitor que a questão não segue a definição rigorosa de argumento. Entretanto, nas alternativas em que a premissa é formada por uma proposição conjuntiva, esta somente será verdadeira se ambas as proposições simples tiverem o valor lógico verdadeiro. Isto posto, as alternativas "a", "d" e "e" têm conclusões válidas. A alternativa "b" é a única que traz um argumento que se encaixa na definição de argumento. Agora, na alternativa "c" se tem uma proposição disjuntiva, que terá valor lógico verdadeiro se pelo menos uma de suas proposições simples for verdadeira. Dessa forma, a conclusão apresentada não pode ser considerada válida.
Resposta: letra c.
Apesar de a alternativa correta ser mesmo C), a dúvida do nosso visitante era bem pertinente: o enunciado da ANPAD implica que todas as cinco alternativas são argumentos, mas o solucionador diz que apenas B) “traz um argumento que se encaixa na definição de argumento”. Quem está certo?
Discussão inicial
A primeira coisa a ressaltar é que a resolução acima é algo hesitante e está pobremente redigida. Ao falar em “definição de argumento”, o autor não deixa claro se está definindo “argumento” ou “argumento válido”. Contudo, sua definição menciona explicitamente três condições, quais sejam:
(1) que um argumento (válido?) deve ter pelo menos duas premissas;
(2) que as premissas de um argumento (válido?) devem ser “seguidas de uma conclusão válida”;
(3) que a conclusão de um argumento (válido?) “deve estar baseada em todas as premissas”.
A condição (2) faz sentido somente com relação ao conceito de “argumento válido”. Embora o adjetivo “válido” tecnicamente se aplique a argumentos, não custa definir “conclusão válida” como “conclusão de um argumento válido”.
Em qualquer caso, porém, as condições (1) e (3) são problemáticas, de modo que vamos discuti-las separadamente.
Número de premissas
Em princípio, cada um pode adotar para si as definições que quiser, desde que as utilize consistentemente. Mas a menos que se queira praticar ciência isoladamente ou propor uma nova maneira de pensar que o valha, deve-se atentar para precedentes abonados na literatura. Entre os livros sugeridos pela ANPAD encontram-se as referências [1] e [2], bastante acessíveis. Em nenhuma dessas obras se vê a restrição de que um argumento deva conter pelo menos duas premissas. De fato, exemplos de argumentos com apenas uma premissa são dados logo no começo de [2], ao passo que [1] registra explicitamente (p. 24) que um argumento envolve “uma conclusão mais uma ou mais premissas”.
É importante frisar que a concepção de “argumento” que estamos discutindo é puramente formal. (Veja a seção Lógica para mais detalhes.) Os proponentes da chamada lógica informal ou teoria da argumentação têm definições diferentes, mas esta não é a lógica pressuposta no edital da ANPAD. Para fins de análise lógica, um argumento é essencialmente um par ordenado , onde é o conjunto das premissas e é a conclusão. (A extração dessas componentes de um argumento “real” ainda é mais uma arte do que uma ciência.) Por definição, um argumento é válido quando é consequência lógica de . No que se segue, supomos que é finito, embora, num contexto mais amplo, essa restrição possa ser ignorada.
Por sua vez, o conceito de consequência lógica pode ser estudado semanticamente (em termos de modelos ou mundos possíveis) ou sintaticamente (especificando-se regras de inferência). Conforme o caso, a afirmação “ é válido” é simbolizada por ou , respectivamente. Em poucas palavras:
• se, e somente se, é verdadeira em cada estrutura na qual todos os elementos de são verdadeiros.
• se, e somente se, existe uma prova de a partir de .
Constitui um resultado fundamental da lógica que essas duas condições são equivalentes para o cálculo proposicional e o cálculo de predicados de primeira ordem.
De posse do conceito de validade, fica fácil entender por que é desnecessário exigir que um argumento tenha mais de uma premissa. Pois se denota a conjunção das proposições de , então é válido se, e somente se, o é. (Note-se que o segundo argumento tem apenas uma premissa.)
Mais ainda, é fácil provar que é válido se, e somente se, é válido. (Veja a seção Lógica para certos detalhes importantes. No cálculo proposicional, isto também equivale a dizer que é uma tautologia.) Este resultado torna natural — pelo menos de um ponto de vista puramente matemático — que falemos até mesmo em argumentos com zero premissas!
Premissas sem uso
Outro problema com a solução acima reside na exigência de que a conclusão de um argumento válido “deve estar baseada em todas as premissas”. O equívoco aqui parece estar relacionado com a presença dos quantificadores universais na caracterização semântica de validade. No entanto, é fácil provar que a relação (clássica) de consequência lógica (pressuposta nas provas da ANPAD) é monótona (crescente): se é válido e , então é válido. Por outras palavras, a validade de um argumento não é “destruída” pelo acréscimo de novas premissas — ainda que sejam totalmente irrelevantes para a conclusão. (A propósito, o tema da relevância é levemente tocado no capítulo 2 de [2].)
Portanto, um argumento pode ser válido mesmo que não seja consequência de todos os elementos de . De fato, isso é bastante comum na matemática, onde a correção de uma demonstração não depende do número proposições fundamentais empregadas. Por exemplo, um teorema sobre espaços vetoriais não deixa de ser um teorema nessa área caso admita uma prova que não utiliza todos os axiomas de espaço vetorial.
Nossa solução
Voltando à questão da ANPAD, podemos dizer que todas as alternativas constituem argumentos legítimos. Na verdade, a definição de argumento é irrelevante para a solução do problema. Nas alternativas A), D) e E) temos aplicações da regra da eliminação de , que é trivialmente válida. Na alternativa B) temos também uma conclusão válida (instanciação de seguida de modus ponens). Finalmente, em C) temos um argumento da forma , que é inválido porque é possível que seja verdadeira e falsa. (Basta supor verdadeira.)
Referências
[1] Copi, Irving. Introdução à Lógica. Ed. Mestre Jou, 1968.
[2] Nolt, John, Rohatyn, Dennis. Lógica. São Paulo: Schaum McGraw-Hill, 1991.
Carlos César de Araújo, 25 de março de 2007, 14:58:15
Revisão: 15 de setembro de 2009, 15:40:21